Era o primeiro dia de aula de anatomia. Eu, ainda
anestesiado pela ideia de cursar medicina, cheguei afoito na sala e que
surpresa ao me deparar com dois corpos imóveis sobre a mesa. Corpos, apenas
corpos... Como máquinas há muito abandonadas pelo condutor.
Tal realidade fez com que eu parasse e refletisse a respeito
da existência. Seria realmente válido viver em busca de objetivos carnais,
visto que sou possuidor de um corpo tão frágil? Beleza, juventude e fortuna
valem mesmo a pena?
Os gregos já acreditavam no caráter dual do ser. De um lado,
a alma, parte imaterial e pensante do indivíduo. De outro, o corpo, material,
apenas realizador das funções da matéria.
Diante daqueles corpos percebi o quão pequenos somos nós,
seres humanos, que em nossa arrogância dizemos ser “filhos do Criador”. Não deixo de acreditar que de fato o somos. Seríamos, no entanto, os únicos? Quem poderia dizer
que o mais ínfimo dos seres vivos não é nosso irmão e, assim como nós,
herdeiros do universo? A questão é que a humanidade, ao longo de sua marcha
evolutiva, apoderou-se das coisas e as chamou de suas... Mas, desde o menor dos
insetos ao maior dos mamíferos, somos todos iguais. Nós usufruímos os mesmos
compostos orgânicos e inorgânicos e as mesmas substancias formam nossa matéria perecível.
Apesar disso, dedicamos nossas vidas a negar a finitude da
carne. Só que em algum momento deparamo-nos com a realidade que negligenciamos:
A morte. Cosméticos, cirurgias plásticas... Disfarces, apenas, para afastar a
ideia de que somos perecíveis... Mas ela (a morte) sempre vem, cedo ou tarde, rápida
ou lentamente.
Acontece que essa dama tão temida leva apenas parte do que
somos... A parte que nos serviu pelo tempo em que vivenciamos a experiência terrena...
Mas o que de fato somos? O que foram aqueles corpos desabitados antes de serem
postos naquela mesa a servir de estudo para jovens pretenciosos, afoitos pelos
saber? Eles, os corpos, foram consciências racionais... Seres pensantes, que
desempenharam algum papel na sociedade humana e, de certa forma, ainda
desempenham ao permitir que suas máquinas orgânicas nos sirvam (a mim e a meus
colegas) de material de estudo.
Onde, no entanto, estaria a parte pensante de cada um
daqueles indivíduos? De onde vieram...
Onde viveram antes de habitar tais instrumentos?
Essas respostas, meus
amigos, foram buscadas por diversos mártires do pensamento humano, que
dedicaram suas vidas a abrir os olhos de seus contemporâneos para a verdade
óbvia: somos, simultaneamente, mortais e eternos, instinto e razão, materiais e
imateriais... Após a morte do corpo, nossa consciência permanece viva a
executar os mesmos raciocínios com o objetivo de evoluir rumos à imagem e semelhança do Criador. O corpo, nossa
parte mortal, degenera sob o solo e seus componentes moleculares, iônicos,
elementares passam a servir de molde para que novas vidas materiais se desenvolvam
(fungos, bactérias... etc) e, assim, inicia-se um novo ciclo capaz de
interligar tudo o que é vivo.
Tal raciocínio nos leva a perceber que não há morte de fato
se a alma é eterna e o corpo alimenta a vida de outros seres, o que fez dessa
dama um conceito abstrato, irreal... Somos, portanto, eternamente vivos,
material e imaterialmente, condenados à existência e à infinitude.
Nenhum comentário:
Postar um comentário