_ O senhor fuma,
doutor?!Questionou surpreso o interno ao me surpreender com entre uma baforada
e outra
Baixei os olhos
_ Você já se apaixonou
alguma vez?
O jovem e futuro médico
olhou através de mim como se buscasse alguma explicação para tal pergunta.
_ Que gosto tinha o
beijo?
_ Balas de menta...
Respondeu. E deixou fugir do bolso o pacote que eu o vira mastigar entre uma
consulta e outra.
_ O meu tinha esse
gosto... E suguei a fumaça... Esse gosto de quem tem muito pouca estima pela
própria vida... E eu tinha mais ou menos a sua idade...
Do elevador do Hospital
Universitário de Brasília saquei do bolso o celular e focalizei a câmera no
espelho. Escolhi, das fotos que eu tirei, a que melhor representasse o meu
sorriso após horas infernais de um interno de medicina. Pensei naquele rival de
infância que veria a minha foto e sentiria desprezo por sua própria vida
analisando meu sucesso nas redes sociais e, de olhos fechados, pensei que não
queria ir para casa. Tirei mais uma vez o celular do bolso e, enquanto
caminhava pelo estacionamento vazio, deslizava faces de rapazes bonitos
tentando descobrir quem seria minha companhia daquela noite. Foi assim, o
recomeço de uma história... Dois rostos, conhecidos de antigos carnavais,
recombinados pelo anseio de preencher o vazio de uma noite qualquer.
_ Finalmente vamos nos
encontrar. Disse ele.
- De onde nos
conhecemos mesmo?
_ Não sei... Algum
amigo em comum?
_ Sim, vários.
_ Foi daquele carnaval?
Foi daquela festa no Outro Calaf?
_ Não sei...
Abrimos a cerveja que
levei, ele acendeu um cigarro e falamos tanto de nós mesmo que em pouco tempo
já nem importava mais de onde nos conhecíamos. Mas, sim, éramos velhos
conhecidos. Quando veio o primeiro beijo, senti como se lhe sugasse cada uma
das palavras que não me havia dito e nem seria mais preciso palavra alguma,
pois cada um de seus pensamentos agora me pertencia.
Lembro da música que
tocava e de como me transportei para tantos lugares naquele beijo. Nosso sexo
começou ali mesmo, na cozinha. Despimo-nos com a fúria de quem tem sede de algo
que os corpos não oferecem a almas que não se vinculam.
Enquanto nossos corpos
se penetravam, aquele som inebriante me transportou através do tempo e me vi de
novo envolto nos braços de minha primeira namorada às vésperas de um dos
primeiros vestibulares ao mesmo tempo em senti o cheiro do desconhecido que
ainda encontrarei no futuro. Estava de novo ao lado dele e os gemidos orgásticos
uniam nossas almas fazendo-as dançar como espectros gasosos de origem diferente
formando um redemoinho entre mil pontos cintilantes.
Ainda não sei se foi um
surto psicótico, o efeito alucinógeno de algo que bebi ou um estado mediúnico.
Na mensagem que enviei uma amiga, chamei de “experiência extracorpórea” e a escolha
das palavras gerou muitos risos nos bares que vieram depois.
Saí daquele apartamento
na 712 norte com a alma preenchida. Estaria satisfeito por aquela noite mesmo
se nunca mais se repetisse. Ainda assim, eu queria muito que acontecesse outras
vezes.
Levou alguns dias, mas
fui eu quem mandou a primeira mensagem e nos vimos mais uma vez ainda naquela
semana. Mais uma vez nossas conversas na cozinha, a música ioruba tocando na TV
ligada e o olhar conservador de Persefane (a filha de estimação que lhe restou
de seu mais conturbado relacionamento)
Persefane mereceria um
conto só dela, tal era a presença que deixou em mim. Seu pelo branco e macio
era só mais um dos detalhes que me abraçavam em sua presença.
A lua era cheia e
iluminava todo o apartamento. Eric caminhou até a sacada e acendeu um cigarro.
Eu o segui, primeiro com os olhos enquanto acariciava o pelo de Persefane.
Depois, levantei-me e o abracei pelas costas. Fiquei assim por longos instantes
apenas observando as baforadas tóxicas de tabaco e nicotina dissolverem-se no
céu claro que eu nunca tinha visto na Asa Norte. Mais uma vez as palavras pareceram
desnecessárias...
Mais uma vez o sexo
louco, mas dessa vez me permiti ficar mais um instante. Ele se encaixava
perfeitamente entre meus braços e o calor que emanava de seu corpo nu me
aquecia por dentro. Meus mamilos tacavam suas escápulas e nossos corações
pareceram alinhados e ancorados em um mesmo ritmo, como se o dele batesse em
meu corpo e o meu no dele... Ou como se não houvesse entre ambos as paredes de
ossos e músculos e dançasse grudados a melodia Tum-tá-Tum-tá.
Havia algo diferente
nele no terceiro dos nossos encontros. Uma inquietação que não conseguir ler em
seus pensamentos... Frases pareciam desconexas... O caminhar de um lado a outro
na sala... O telefone tocava a cada minuto e ele falava agitado com pessoas diferentes
enquanto Persefane fazia o papel de anfitriã deixando-me acariciar seu pelo. A
amiga da faculdade, a mãe, o colega de trabalho...
Talvez não fosse uma
boa hora... Pensei e ele parou no mesmo instante e mostrou que ainda sabia ler
meus pensamentos.
Depois daquela noite,
Eric afastou-se de mim por um tempo. Nos primeiros dias, uma ou duas mensagens
não respondidas me mostraram que talvez eu não fosse mais tão bem vindo em sua
vida. Deixei que me afastasse apegando-me ao pouco que me restava de amor
próprio imerso no mar de carência.
Foram tempos difíceis,
confesso.
Naquela quarta-feira,
uma amiga pediu um conselho sobre amor... Eu que nunca fui bom de amores, de
conselhos era o melhor. Disse que deveria insistir, já que não conseguia
superar aquele talvez.
Ela sorriu com ironia.
E digitou um desafio em poucas palavras.
“Uma teoria deve ser
testada”
Refleti por menos de um
segundo, pois era só o que eu precisava para tomar o primeiro passo.
Não fugi do clichê “Oi
sumido” e ele respondeu como se tivéssemos nos visto no dia anterior.
Convidou-me ao cinema e eu escondi o meu sorriso bobo em uma mensagem ambígua.
Mas nos minutos que antecediam minha pontualidade compulsiva, experimentei
quase todas as roupas que eu tinha.
Ele elogiou que eu
vestia amarelo e eu nem reparei que ele usava a mesma camisa de quase sempre.
“Amarelo é a cor de
Oxum” disse ele. E foi a primeira vez que ouvi dizer sobre a mãe das águas
doces.
Nunca conseguimos
chegar ao cinema, pois nos perdemos nas muitas tesourinhas da Asa Norte e nos
atrasamos para o filme que ele queria ver. Voltamos ao mesmo apartamento, às
baforadas para a lua e ao beijo com gosto de tabaco.
Mas a partir de então,
passamos a nos deixar ver sem pressa...
No fim de dois meses
inteiros eu me deixei seguir pelas aves que cantavam dentro de mim e com o
gosto que voavam me faziam flutuar. Estava com ele quando não estava no
hospital e, as vezes, mesmo no hospital, sentia perto o gosto dele.
Certa vez, depois do
amor, fez ar de mistério e disse: “Vou te contar uma história”. Mordi o lábio
inferior como quem pede que conte logo.
“Iemanjá teve Ogum,
depois Exu e por último teve Oxóssi. Ogum foi à guerra, esse era seu lugar. Exu
saiu ao mundo, pois não era de se prender. Restou Oxóssi.
Oxóssi queria ir às
matas e Iemanjá teve medo, pois sabia que nas matas vivia Ossain e temia que o
filho caísse em seu feitiço. Ainda assim, não pode se opor.
Assim que se viu na
mata, Oxóssi encontrou um estranho que lhe ofereceu agua. O filho de Iemanjá
tinha sede e fez menção de aceita-la. Antes que tomasse o primeiro gole, Ossain
o advertiu: “Se beber, vais se apaixonar por mim!”. “Pois eu quero mesmo assim”,
respondeu Oxóssi. E bebeu. Assim feito, apaixonou-se louca e irracionalmente
por Ossain e os uivos que se ouvia nas matas eram os gemidos do amor entre os
dois orixás. Acontece que Ogum, irmão de Oxóssi e dono da guerra, soube do
feitiço que se impusera em seu irmão e foi logo se opor a Ossain. “Volte a sua
guerra!” ordenou Oxóssi “pois era apenas água, o que meu amado me deu de beber”””
Beijei-lhe a boca e
percebi que estava ali o pote de Ossain.
Eu que não tinha
família na capital, achei que era hora de apresentar-lhe meus amigos. Juntei
todos numa festa no gramado abaixo do apartamento que dividia na 406 norte e,
no mesmo dia, lhe pedi em namoro. Ele desviou os olhos, desconfortável, e foi
embora mais cedo que imaginei. Não pude impedir, mas não me lembro de mais nada
daquela noite. Acordei numa poça do meu próprio vômito e passei dois dias sem
notícias de Éric.
“Nunca peça um amor a
Oxum, pois o único amor que ela oferece é o amor por si mesmo”. Algo que me
recordei no exato momento que despertei.
Foi no mesmo sofá, diante do mesmo olhar puritano de
Persefane que nos dissemos “adeus”. Eu sabia que ele não estava preparado para
uma relação, mas realmente acreditei que seria possível manter o que quer que
estávamos vivendo. Reconheci que havia sido um erro dar nome, qualquer que
fosse. Mas ele achou q faria meu bem transformando aquele momento em um ponto
final.
Evitei os olhos dele e levou-me até a porta como se faz a
uma visita qualquer e ainda disse “para que você volte”. Devolvi com o olhar de
quem diz que não voltaria e senti o aperto antecipado da saudade de Persefane.
Antes de ligar o carro, usei o pouco que me restava dos
dados da internet do celular para reinstalar aquele aplicativo. Não precisei
deslizar mais que um ou dois rostos para me deparar com o dele e senti a velha
dor de quem se prende em suas próprias expectativas. Corrompi o mal gosto que
ficou em minha boca com uma caixa inteira de chocolates e várias cervejas ao
lado dos bons amigos que a vida me deu.
Mas percebi que havia vivido sozinho a parte importante da
história que me pareceu tão bonita.
A verdade é que para amar de volta, uma pessoa precisa se
amar primeiro. Algumas delas... De tanto querer destruir a si mesmas... Em
algum momento conseguem... E levam consigo tudo o que há em volta.
No meio daquela tarde,
recebi a mensagem de um amigo perguntando por ele. A princípio, não entendi o
porquê de tal preocupação e tentei ignorar a pergunta. Mas a segunda mensagem
trazia o link de uma reportagem do Correio Brasiliense em que constava a
história de um rapaz de 25 anos, desaparecido há dois dias. A segunda
reportagem relatava que tal rapaz havia sido encontrado e em qual hospital se
internara.
Confesso que pensei
mais de uma vez. Uma parte de mim tentou ser prudente, afinal, ir até lá seria
mergulhar mais uma vez em uma história que eu já sabia não ser bem vindo. Parei
o carro e aguardei uns bons minutos no estacionamento analisando minhas
motivações... Mais de uma vez liguei o carro para voltar pra casa. Eu não
consegui. Vesti o jaleco que deixara dobrado no banco do passageiro e caminhei
até a portaria como se estivesse sempre por ali. Passei pelo porteiro e deixei
escapar um “boa noite” e um sorriso forçado esperando que ele não visse que o
meu crachá era de outro hospital. Perguntei por um ou dois seguranças onde era
a Unidade de Terapia Intensiva, onde acreditei que o encontraria e a cada um
contei uma história diferente. Foi assim que cheguei ao quarto andar. Vasculhei
leito por leito e em cada pedaço de corpo esperava encontrar algo que me
lembrasse dele.
Sem sucesso, questionei
à médica responsável por aquele espaço apresentando-me como interno de medicina
da Universidade de Brasília, o que de fato era verdade. Eu não ousaria, no
entanto, revelar que minha motivação ali era muito mais que acadêmica.
Mostrou-me onde o encontrar e descreveu de forma precisa cada detalhe do que
estava escrito em seu prontuário. A precisão clínica que decepou qualquer das
minhas esperanças.
Foi pelas escadas que
desci os quatro andares, mas não era essa a causa da alteração em minha frequência
cardíaca ao me ver a poucos metros dele.
Reconheci a tatuagem no
braço esquerdo e cada detalhe de seu peito nu. Pela face, eu jamais o
reconheceria. Fitei por alguns instantes sem de fato entrar na enfermaria,
impedido por um choro estridente. A mulher de cabelos louros que chorava era a
mesma que vi uma vez em uma foto. Olhou-me como se me conhecesse, mas antes que
me visse novamente, dei as costas e parti com uma lágrima em cada um dos olhos.
Compreendi o meu papel nessa história.
Nenhum! E foi Eric quem me expulsou dela. Por isso, decidi que era hora de
partir.
Fiquei
feliz por ele, mas naquela noite no meio da semana aceitei
o convite de uns amigos para ir a uma festa qualquer. Lá pras tantas, depois de
muitas doses de algo que nem sei o que é, jurei ter visto Eric no meio da pista
de dança. Mal suportei a agonia de saber que não era ele.
Busquei sentir mais uma vez o gosto daquela boca… Pedi um cigarro e
suguei como se fosse o ar de dentro de sua boca escondendo-me no canto da bar.
Fui-me embora sem me despedir e abracei minha covardia entre os cobertores… Ela
era magra como ele.
_ E a história acaba
assim? Perguntou o interno decepcionado
_ Uma amiga, vendo
minha dificuldade em superar a história de Éric, trouxe a informação de que ele
voltara ao à cidade natal para concluir seu tratamento. Fingi não me importar,
enquanto vasculhava diariamente as redes sociais em busca de qualquer vestígio
dele.
... Foi no meu
aniversário naquele mesmo ano. Alguns dias depois, na verdade. Recebi dele uma
mensagem e voltamos a trocar mensagens. No auge da ilusão refeita, refém do álcool,
enviei-lhe uma música que havia tocado a semana toda no som do meu carro, no
fone durante a corrida, no rádio durante o banho. Arrependi-me logo. Mas já não
podia apagar o que havia enviado.
Foram meses em que uma
parte de mim sonhava com ele refeito, voltando a mim para viver a história que
a vida nos roubara.
Um dia, ele perguntou o
que acontecera, já que não se recordava de boa parte. Obrigou-me nesse momento
a relembrar qual era o meu papel nela.
Pela primeira vez em
todo esse tempo, entendi o amor que me faltava.
“Nunca peça um amor a Oxum, pois o único amor
que ela oferece é o amor por si mesmo”.
Manoel Victor Ferreira Silva