Do quarto, ouço a TV ligada. Caminho até a sala e vejo que meu colega de república saiu e se esqueceu de apertar o desligar
do aparelho... Acontece que o sofá, a mesa e as cadeiras ouviam alguém me
descrever em um passado não muito distante enquanto falava sobre si. "Não
sei se eu tenho autoconfiança para te olhar sem tremer ou gaguejar",
é o que dizia a mulher na tela da TV. Foi então que eu lembrei de um tempo que tentei esquecer até perceber que era preciso encarar frente a frente para, finalmente, superar. Um tempo que nunca descrevi completamente, a não ser de uma forma abstrata. Quando eu me
desviava das rodas de conversa por não saber me portar dentro delas... Quando eu
precisava olhar para algum lugar para fugir dos olhos dos outros... Olhava para
baixo ou para cima... nunca nos olhos...
Lembrei da fila dos padrinhos
no casamento da minha irmã, do céu azul, da grama verde e como foi sofrido
estar ali, no que poderia ter sido um momento feliz...
Lembrei das noites em que eu acordava em meio a pesadelos...
Dos olhos do sequestrador que me perseguiam nos sonhos, numa fila de supermercado,
no meio da rua ou no dia do vestibular... Lembrei de quando parei de dormir
para não sonhar e das olheiras que invadiram meu rosto. Lembrei da
comida, que foi perdendo o sabor e se tornando mais uma obrigação para me
manter vivo, quando eu já me considerava morto.
Lembrei dos murmúrios que eu ouvia como gritos nas salas panorâmicas do meu
antigo cursinho e de como as pessoas me feriam ao falar acreditando não ser ouvidas.
Eu? Eu só tinha medo.
Lembrei das vezes em que rezei para não existir e das em
que me imaginei pulando da sacada do quarto do apartamento em que eu morava. Eu
nunca quis morrer, mas quis muito não existir. Eu acreditava que, se eu não
existisse, também não existiria aquela dor, que já se tornara física e apertava
meu peito de uma forma que eu nunca soube descrever. Minha maior angústia era
justamente saber que nem a morte me libertaria daquele pesadelo. Isso foi, no
entanto, o que me manteve vivo e me ajudou a suportar o medo até ter forças
para me livrar dele... A fé que minha mãe me ensinou e a que aprendi sozinho...
Uma fé sem religião de quem aceita os fundamentos da Doutrina Espírita, mas se
vê, no meio da tarde, em uma Igreja Católica orando fervorosamente por Nossa
Senhora... De quem procura na Umbanda, no Candomblé, na meditação ou nas
repetidas orações de uma novena o contato perdido com Deus e consigo mesmo.
Lembrei dos desenhos macabros que enchiam as páginas das
apostilas e tapavam as letras, frases, parágrafos, fórmulas e tudo o que se
dizia ser necessário saber para passar no vestibular... Lembrei, também, das
coisas belas que surgiram quando aprendi a explorar a arte para mostrar a
beleza que havia em mim, mas, antes, tive que descobrir que havia algo belo em
algum lugar dentro de mim...
Tudo começou naquele dia
15 de março, o sequestro, o rosto do
sequestrador, as ameaças verbais, o transtorno pós-traumático...
Primeiro, me perdi na auto-piedade e uma das coisas que
aprendi foi que ter pena de mim mesmo não resolve problema algum... Não, meu
amigo, nas grandes lutas da vida é preciso ter coragem e maturidade para lidar
com os problemas. Nesses momentos, curvar-se só te faz mais vulnerável aos
ataques constantes da dor. Eu me curvei e doeu muito... Depois, aprendi que os
problemas da vida se dividem entre os que se pode resolver e os que se resolvem
por si. Então, não vale a pena demorar-se muito, nem gastar tanto o seu
pensamento neles, pois isso abre portas para os tão
temidos “males da alma”. Sejamos práticos, resolvendo ou deixando que os problemas se
resolvam por si!
Hoje, diante daquele depoimento, percebi o quanto foram
importantes para mim as poucas pessoas com quem compartilhei aquele momento...
E, por elas, tenho
saudade dos intervalos de paz entre aos turbulentos ataques de mim mesmo. Dos intervalos das aulas, sob o Flamboyant florido, a
parte bonita daquele cursinho macabro... Da Praça Sérgio Pacheco... Dos abraços
apertados de irpai, os mimos de irmãe, a companhia da irmã do coração e
companheira de vidas... Da comida de mãe, que foi ganhando o sabor conforme eu
me sentia mais amado, e do pai durão que disse, pela primeira vez, “Eu te amo,
meu filho”...
Foi no amor, na fé e na arte que encontrei a saída... Agora,
diante dessas lembranças tão raras, contradigo minhas próprias palavras. Aqueles
momentos não foram os piores, nem os melhores. Foram tão bons quanto ruins...
Foram intensos... Só momentos que se foram...