domingo, 15 de dezembro de 2019

JALECO BRANCO NA PELE PRETA


Era fim da manhã no ambulatório de otorrinolaringologia de um hospital universitário qualquer. Não mais prontuários sob a mesa e a Staff, uma mulher de meia idade que ostentava um corpo esbelto, olhos claros e uma vasta cabeleira loura, papeava com o grupo de internos e residentes, cuja pele e o jaleco tinham quase a mesma cor.
Timidamente, da ralé de sua mais baixa posição na hierarquia médica, três graduandos pretos tinham nas mãos o papel que lhes atestaria presença e aguardavam ansiosos pelo carimbo e assinatura da Doutora.
_ A senhora viu que a redação do ENEM deste ano foi sobre deficiência auditiva? Perguntou uma das residentes louras.
Os olhos da Otorrinolaringologista brilharam e de entre seus lábios saíram palavras bonitas sobre o quanto era importante que agora dessem visibilidade a um problema que afeta tantas pessoas. Mas, ao fim da enunciação eufórica, seu semblante mudou de repente para algo quase decepcionado e falou inocentemente:
_ É... Mas agora entra todo mundo na universidade... Entre preto, entra índio, só não entra quem estuda!
A residente deu trela e o assunto continuou por mais algum tempo.
Os três graduandos, invisíveis em cantos distintos da sala, fitavam os sapatos brancos desejosos de assinatura e carimbo para fugir logo daquele lugar apertado. Mas as palavras continuava a chicotear sangrando em suas costas e massacrando a pouca estima que ainda sentiam por si mesmos. Que pena olharem para o chão, pois se vissem uns aos outros talvez teriam encontrado o mínimo de força.
Ainda fitava o chão, quando voltou pra casa o que tinha o privilégio de voltar caminhando. Enquanto seu sapato branco rastejava entre o tapete vermelho de flores de flamboyant, permitiu que uma lágrima lhe fugisse dos olhos. Apenas uma, as outras ficaram contidas e se tornaram ira. Jaleco branco na pele preta, choro baixo é luta!

PROPUESTA INDECIENTE



Julho de 2015.
A tarde chegava ao fim e eu caminhava pela praia de Ponta Negra com o gosto da vitória de quem apresenta seu primeiro trabalho científico. Um relato de caso no Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade.
Em algum momento, deixei-me cair sob a areia e fitei o mar, que me convidava a um mergulho. Sem querer deixar sozinhos meus pertences, pedi ao rapaz sentado na mesa alguns metros de mim que os observasse por alguns momentos. Ele assentiu com um sorriso. Desviei os olhos da malícia que me despertou aquele sorriso. Corri para o mar deixando a mãe, que àquele tempo eu não conhecia, envolver-me em um abraço morno.
Voltei pela areia com o arrepio da brisa de fim de tarde e agradeci ao desconhecido por evitar um roubo qualquer.
- Sou Guto!
- Guto de Gustavo?
- Guto de Agostinho.
- Como o filósofo?
- Sim, como aquele filho da puta.
Deixei escapar uma risada, baixei meus olhos envergonhado e reconheci na tatuagem um dos meus desenhos. Era um coração anatômico com flores ornando a arco aórtico e a veia cava com uma pequena diferença...
- No meu desenho, o coração tem feridas e sangra.
- O meu também já sangrou... O que você vê são as cicatrizes! E sorriu olhando fundo nos meus olhos... O que é que está sangrando aí no seu coração?
Eu, que era jovem demais para saber que o quão clichê era a dor de amar outro homem, baixei um pouco mais os olhos como quem não deseja falar. 
Puxou uma das cadeiras e aceitei o convite a uma cerveja. Soube sobre suas viagens por Cuba, Guatemala, Nicarágua e desfrutei um pouco de sua opinião sobre cada um dos temas que nos importunava socialmente naquele tempo. Eu disse pouco, como quem tem medo de mostrar-se a um desconhecido, mas abri coisas profundas que ainda não havia contado ao melhor dos meus amigos.
Nem percebi que o sol seguia afundando no mar e a imensa lua aparecia no céu deixando-o quase tão claro como no dia.
- Estão fechando... E estendi a mão em um gesto de despedida.
- Espere... Acho que tenho uma ou duas garrafas de vinho... Moro logo ali! E apontou para um dos prédios de frente ao mar.
Usei o álcool como pretexto e como desculpa... Subimos as escadas... Abriu a garrafa e me serviu uma taça, enquanto eu me acomodava desconfortável e desajeitadamente na ponta do sofá.
Ligou uma velha vitrola e deixou tocar no disco as músicas haviam embalado minhas aventuras cubanas alguns meses antes... Acendeu um cigarro, depois me trouxe papel e lápis...
_ Quero que me desenhe! E se despiu, debruçando-se na janela. A fumaça que exalava de sua boca dançava no céu e a lua cheia disputava o protagonismo da noite com o mar e o Morro do Careca, enquanto a brisa de Iemanjá fazia flutuar a alva cortina aberta, formando a moldura perfeita para a imagem que eu pintei em minha mente antes mesmo de deslizar o lápis no papel. Quando o fiz, foi como se eu tocasse com minhas mãos cada parte do corpo que imprimia na folha em branco. Tateava-lhe os cabelos, ombros e imprimia meus dedos no detalhe de suas mãos. Seguia pelo dorso e apalpava suas nádegas com meus traços fortes.
Não sei ao certo quando concretizei esta metáfora, mas quando me dei conta, deixava meu corpo seguir o embalo dos versos cantados em espanhol sentindo o gosto de vinho em sua boca.
Acordei no meio da noite. Envolto em lençóis brancos e limpos, era de um homem a respiração que se afogava em meu peito acelerado. Eu tinha medo e é do medo que nascem os piores sentimentos.
Saí no meio da noite. Como nos filmes, só lhe deixei um bilhete no verso do papel tingido, em meus traços pobres, com a imagem ainda impressa em minha memória.